Raimundo Clarindo do Nascimento, o “Cacaúba”, trabalhava no início da década de 1970 nos imensos castanhais paraenses quando toda a região do Bico-do-Papagaio fora invadida por tropas federais naquele distante ano de 1972 para debelar a mais importante luta pelo restabelecimento das liberdades públicas no período ditatorial: a Guerrilha do Araguaia.
Recrutado pelo “Doutor Antônio”, comandante da base militar de São Raimundo e um violentíssimo agente da repressão, foi atuar como rastejador na base militar de São Raimundo. Tal base ficava nas cercanias da reserva dos índios suruís em São Geraldo do Araguaia(Pa).
Segundo seu depoimento para o então Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), coordenado pelo Ministério da Defesa em março de 2011, o “Doutor Antônio” era “uma pessoa mal encarada, alto, forte e de cabelos crespos” e que até janeiro de 1985 permanecera na área conflagrada “procurando algum guerrilheiro sobrevivente”. Sabe-se que até 1992/1993 gente da região fora presa apenas por chamar-se “Dina” e militar em movimentos sociais.
Raimundo “Cacaúba”, também conhecido por Raimundo “Baixinho”, relatou que em sua última missão de rastejador teria passado 12 dias ininterruptos na mata, na região do “Jacaré Grande”, rio que desce da Serra das Andorinhas/Martírios e vai encontrar depois de muitos desvios sinuosos o caudaloso rio dos Karajás. Estava ali, guiando uma tropa, para localizar os últimos guerrilheiros vivos.
Provavelmente deve ter se referido ao ano de 1974, quando às forças repressivas promoveram uma verdadeira caçada na região e o rigor das últimas pesquisas revela-nos que 41 guerrilheiros foram mortos, assassinados, sob a custódia das forças armadas. É que depois de 1973 a ordem direta do gabinete de Garrastazu Médici, presidente de então, era torturar até a náusea e matar a sangue-frio todos os insurgentes presos nas matas. E o ano de 1974 fora pródigo neste sentido, inclusive com o provável fuzilamento de cerca de 50 camponeses e castanheiros que trabalhavam na região.
Os casos mais graves, colhidos até agora, revelam que São João do Araguaia (Pa) e Xinguara (Pa) foram palcos de tais execuções sumárias. Cremos, porém, que pode haver mais casos da sandice sanguinária dos generais da época e só o avanço das pesquisas poderão nos dar a medida exata da atuação do “satanás de botas”, segundo ensina a analogia corrente entre os camponeses referindo-se à atuação dos militares daqueles tempos.
Mas “Cacaúba”, depois do silêncio de quase quarenta anos, informara que “no local conhecido por ‘centrinho’, ao lado do Rio Sororozinho, conheceu ‘Zé Carlos’ (André Grabois), ‘Ivo’ (José Lima Piauhy Dourado) e ‘Joca’ (Líbero Giancarlo Castiglia), este ferido no braço”. Teria, também, conhecido “a ‘Valquíria’(Walkíria Afonso Costa), moradora do São Raimundo que apareceu em sua casa acompanhada de ‘Joca’ depois do tiroteio com o ‘Juca’(João Carlos Haas)”. Curiosa mesmo foi à informação de que “os meninos do mato se comunicavam com os moradores Antonio Monteiro (...), Luís Roque e Antonio Luís através de uma vara seca e uma vara verde”.
Afirmara que “a ’Valkíria’, muito magra, foi presa na casa do ‘Zezinho’ e Maria ‘Fogoió’ e foi morta pelo Capitão Magno”. Tal “Capitão Magno” é muito citado pelas torturas perpetradas contra os camponeses e que teria sido um dos agentes que atuou, anos depois, na prisão dos padres franceses do Araguaia, Aristide Camio e Francisco Gouriou, no início dos anos de 1980. A acusação era de que os religiosos promoviam a subversão, intentavam novas guerrilhas e por isso foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN).
Na região da “Abobóra” viu “ o ‘Joca’ amarrado com embira (fibra extraída de algumas árvores e que serve para fabricação de cordas), todo ‘obrado’ e muito machucado ”. Teria presenciado o traslado do combatente, depois de assassinado, para a Base de Xambioá (To) para um local conhecido como “cemitério da base” e lá fora sepultado.
Quando o “Amaury” (Paulo Roberto Pereira Marques) fora preso “com o pé baleado e o ‘Doutor Antunes’, da base de São Raimundo, provocava-o perguntando se queria comer um Mutum. O ‘Ivo’ foi preso e vestia calça azul tropical e que o ‘Doutor Alberto’ dizia que viu o ‘Nunes’ (Divino Ferreira de Souza) morrer. O guia Olímpio, da fazenda ‘Carrapicho’, matou o ‘Peri’(Pedro Alexandrino de Oliveira) que estava com outros que conseguiram fugir. O ‘João Goiano’ (Vandick Reidner Pereira Coqueiro) foi encontrar-se com o ‘Simão’(Cilon da Cunha Brum) e quando se aproximou percebeu algo diferente e correu, porém foi alvejado pelos militares emboscados. Seu corpo foi mantido em um lastro de madeira e depois retirado por um helicóptero, isso aconteceu na ‘grota da lima’. Vi o ‘Simão’ puxando água do poço por uma bomba na base de Xambioá (To)”, relatou à missão governamental.
Recordara, ainda, que houve um encontro de militares e ouviu pelo rádio a notícia da prisão de “Raul” (Antônio Teodoro de Castro). Estava subindo a Serra do Cajueiro, próximo ao Rio Sororozinho.
Além dos militares já citados teria trabalhado, também, com os “doutores Ivan, Maia, Molina e João” e que esse Molina “não falava igual a nós”. Sabe-se que militares portugueses, apeados do poder pela Revolução dos Cravos, teriam assessorado militares brasileiros repassando-lhes as experiências dos combates contra os movimentos independentistas da África, como Angola e Moçambique. É bem provável que a CIA, fétida agência de inteligência estadunidense, também teria “ensinado” nossos generais, como Hugo de Abreu e Antônio Bandeira, como debelar a insurreição das matas do Pará.
Raimundo “Cacaúba” foi assassinado em fins de junho de 2011. Três dias antes do estranho crime, o Major Curió esteve na Serra Pelada, local do assassinato, em reunião com aqueles que ainda lhes são fiéis.
Sabemos que o ex-guia teria dito, horas antes do ocorrido, que sua cabeça estava a prêmio.
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